Uma idéia, um rumo: para onde vai o estado de direito?

AutorAntonio Celso Baeta Minhoto
CargoMestre em Direito Político e Económico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Sao Paulo
Páginas343-375

Mestre em Direito Político e Económico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Sao Paulo, SP; Doutorando em Direito Público pela Instituição Toledo de Ensino, Bauru, SP; Professor Titular de Direito Público na Universidade Municipal de Sao Caetano do Sul - IMES, SP; Advogado; Autor de obras jurídicas. antonio@baetaminhoto.com.br

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1. Introdução

No campo de estudo do Direito, ainda que tal aspecto não lhe seja nota exclusiva em comparação a outros campos de atividade humana, há idéias que se transformaram em máximas cujo questionamento se mostra muitas vezes difícil ou custoso.

O tema do presente estudo é um bom exemplo disso

De fato, seja por suas próprias características e vantagens, reais ou nao, seja pelo que alguns chamam de falta de opçoes melhores e viáveis, o modelo de estado contemporáneo é praticamente todo ele - excepcionando-se, talvez, os regimes autoritarios de alguns países africanos e outros mais específicos como Coréia do Norte e Cuba - oriundo, inspirado e baseado numa concepção de sociedade, de governo, de direito e de estado toda ela advinda do estado de direito.

Sem embargo desta inegável releváncia de tal modelo estatal, não se pode deixar de notar que desde seu surgimento até os días atuais, sofreu o homem, o mundo e a sociedade tal sorte de transformaçóes que se afigura impossível não terem estas gerados efeitos marcantes sobre a própria idéia do Estado de Direito, tal como concebida no passado, originalmente.

Sabemos, até mesmo de modo intuitivo, que não há mais como se pretender a vivencia de uma sociedade, a atuação de um governo, a organização de um Estado, adotando-se puramente o modelo ortodoxo e original de Estado de Direito. Esclareca-se, contudo, que a questao não é de se invocar aquí, já neste ponto, a não aplicação ou mesmo a colocação em dúvida sobre a viabilidade desta concepção de Estado. Realmente, não se trata disso.

O que ocorre é que este modelo foi se alterando ao longo do tempo e hoje, provavelmente mais do que em qualquer outra época, a demanda por mudancas atinge níveis inéditos; a demanda pela adaptação das estruturas e modelos tradicionais ao cenário atual é constante, é profunda, é de difícil antecipação sobre seu desenlace ou mesmo seu desenvolvimento e potencial finalização .

Assim, as mudancas estao em curso e os questionamentos, sempre novos e sempre mais e mais desafiadores, se colocam no caminho do homem, o que, claro, atinge também uma estrutura como o Estado de Direito. Destarte, a problemática atualmente postada diante de nós em face do tema deste trabalho é justamente a indagação a encimar este mesmo estudo: para onde vai o Estado de Direito?

É esta questao que buscaremos, senão responder de modo objetivo, ao menos sugerir, ainda que de modo especulativo, caminhos possíveis e viáveis, como se verá em tópico específico mais a frente. Page 345

2. Estado de direito: surgimento e consolidação

Nos afastaremos das indagaçoes doutrinárias havidas especialmente num passado mediano, relevantes por sinal, acerca do surgimento do Estado em si.

Tal discussao era dividida basicamente entre os que defendiam a existencia de Estado inerente ao homem, uma espécie de princípio constituinte do próprio ser humano1; entre os que acreditavam num Estado surgido no Mundo Antigo, notadamente Grécia e Roma2 e, por fim, aqueles que véem no Estado uma criação eminentemente moderna3.

Como nosso estudo é sobre o Estado de Direito, adotaremos esta última vertente para nossas observaçoes, ou seja, a de que o Estado é uma criação da idade moderna até porque é fora de questao que o Estado de Direito surgiu na Idade Moderna e é uma clara evolução do Estado Moderno.

Convém comentar algo sobre o Estado Moderno

Objetivamente, adotaremos como marco histórico do surgimento do Estado Moderno o final da chamada Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), com a assinatura da Paz de Westphalia, confuto que envolveu praticamente toda a Europa (exceção apenas da Rússia) e trouxe inovafóes importantes como a introdução clara de uma idéia de tolerancia e liberdade religiosa (notadamente para as correntes entao vigentes: calvinismo, luteranismo e catolicismo) e, principalmente, trouxe consigo a concepção de uma visao do Estado como uma entidade dissociada da religiao e detentora de razoes próprias, as chamadas Razoes de Estado. Page 346

Este Estado Moderno, ainda mais, trará consigo alguns itens básicos importantes para o próprio Direito: Territorio rígidamente definido; População identificada com esse território; Exército Próprio4 - e não mais legioes mercenárias tao comuns ao período feudal - e; Soberanía, marcando esta a nota distintiva maior do Estado em sua face Moderna, em que este não conhecerá, dentro de seu próprio território, poder algum que possa sequer ombreá-lo, menos ainda submetelo5.

O poder e seu exercício na sociedade passa a ser muito mais racionalizado, sistematizado e formalizado com a inserção do Estado Moderno segundo as características que acima mencionamos como elemento novo na estrutura social. O Estado passa a ser o único detentor e legítimo possuidor do poder político, com este se identificando de modo umbilical.

O poder qualificado como político deve ser entendido, aquí, como aquele que permite ao seu detentor o uso da forca, se necessário for, para alcancar seus desideratos e fazer valer a prevalencia de suas vontades e disposiçoes.

O Estado Moderno, que já era, em si mesmo, fruto de pressoes históricas que acabaram por dar ensejo ao seu surgimento com as características vistas acima -pressoes estas advindas, como um veio principal, das profundas mudancas observadas no modo de produção da sociedade de entao, ou seja, a conhecida transição do feudalismo para o capitalismo- passou, ao longo de largo período de tempo, a sofrer outras tantas pressoes no sentido de que certos valores fossem adotados, aprofundados e tantos outros abolidos ou mitigados.

De modo sutil, insidioso e constante, foi se formando todo um ideário, todo um corpo de idéias cujo objetivo principal era conceder uma feição ideológica ao sistema produtivo que nascia e entao se desenvolvia, o capitalismo, a fim de que houvesse um fechamento lógico entre dois aspectos, o aspecto produtivo e o aspecto político, formando um todo çoeso e único. Page 347

Nesse ambiente, surgiu o liberalismo

Os objetivos desse trabalho não contemplam uma análise exaustiva do liberalismo, tema rico e naturalmente envolto num desenvolvimento que se alongou por vários anos -na verdade pelo menos dois sáculos-, satisfazendo-nos a simples menção de que foi ele tomando suficiente corpo no seio da sociedade ocidental européia, até que, em 1688, com o advento da chamada Revolugao Gloriosa na Inglaterra, adotou-se naquele país, nesta ocasiao já de modo formal, o sistema parlamentarista de governo e o próprio Estado passou a adotar para si um rol de valores típicamente liberais.

Surgia o Estado Liberal. o Estado Liberal trouxe consigo diversas idáias importantes que modificaram a feição do Estado de modo inegável, em si mesmo ou como instituicao, mas, poderíamos destacar quatro características ou idáias centrais básicas integrantes ou que passaram a integrar a esséncia mesma do Estado: propriedade, contrato (ou contratualismo), liberdade e individualismo.

O Estado passava a ser o fiel defensor desses principios. Defesa incondicional da propriedade; respeito e náo interferencia do Estado nas disposiçoes contratuais firmadas entre os individuos ou empresas (laissez-faire); liberdade de um modo geral, mas liberdade principalmente para vivenciar os preceitos liberais e capitalistas e, por fim; proteção ao individualismo, aspecto fundamental num modelo de sociedade que procurava defender a livre iniciativa e o espírito empreendedor de um modo geral.

Como uma evolução do Estado Moderno, ou pretendendo isso ser, o Estado Liberal apurou e lapidou uma idáia já existente que vem a ser a divisao do Estado em Estado-Poder e Estado-Sociedade, conceitos especialmente importantes para os movimentos revolucionários do final do século XVIII, especialmente a Revolução Francesa.Inicialmente, o Estado Liberal traz consigo, assim, a idáia de que o Estado que exerce o poder político e o Estado que recebe os efeitos do exercício desse poder eram dois entes ou duas instituiçoes totalmente diversas.

Muito embora anteriormente ao Estado Liberal já existisse, no absolutismo monárquico, limites ao exercício do poder real, tais limites eram ainda acanhados, muitas vezes meramente pontuais, como á, inclusive, o caso da Magna Carta que, conquanto seja evidente marco histórico na organização formal do Estado, na previsao de direitos e garantías fundamentais e na limitação do pode real, foi igualmente um evento histórico pontual, sem uma seqüéncia evolutiva a lhe suceder.

Desse modo, conseguimos entender porque Luís XIV disse, certa feita, que "O Estado sou eu" (L 'etat c'est moi), afinal, os limites impostos ao soberano nesta ápoca eram ainda frágeis e incipientes, possibilitando que este exercesse o poder político colocado a sua disposição praticamente de acordo com sua conveniencia. Assim, á mesmo com o Estado Liberal que surge de modo efetivo, sistemático e formalizado a idáia de limitação do poder.

Ante o acima exposto, podemos concluir que o Estado Moderno, inspirado pelo...

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