Valor social do trabalho e dignidade na constituição

AutorLeonardo Vieira Wandelli
CargoDoutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná, (2009)
Páginas41-65

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1. Introdução: a juridificação do trabalho como valor

Direitos expressam condensações institucionais em torno de lutas sociais pela realização de necessidades e interesses afirmados e negados historicamente. Na modernidade, torna-se hegemônico o modo de produzir capitalista, baseado na compra e venda do trabalho por conta alheia. A maior parte das formas de trabalhar e produzir, como o trabalho associado, o artesanato, as relações de dependência pessoal na gleba, a propriedade coletiva, o extrativismo de subsistência, a produção familiar, as corporações de ofício e mesmo a escravidão formal foram quase totalmente dissolvidas pelo modo capitalista. Generalizou-se a forma assalariada de trabalhar, em que trabalhadores, separados dos meios de produzir, são compelidos a vender a outrem a sua força de trabalho, submetendo-se ao comando daquele que irá se apropriar do produto do seu trabalho. Uma compulsão que associa a servidão coacta, involuntária, pelo aguilhão da fome produzido pela separação das populações dos meios de produção, com a servidão voluntária do “submeter-se como ato de vontade”.3A juridificação dessa específica forma de trabalhar, por meio do modelo de um trabalho subordinado juridicamente protegido, serve, de um lado, às necessidades de estabilização e legitimação da compra e venda da força de trabalho. Mas, de outro, não deixa de constituir um espaço de lutas e garantias de implementação de avanços duramente conquistados pelas massas trabalhadoras, que buscam resistir às múltiplas negações de suas necessidades produzidas pelos efeitos do capital sobre o mundo vivido do trabalho, conduzindo, assim, para o campo jurídico, a luta social. Nisso consiste a conhecida tese da ambivalência do direito do trabalho na sociedade capitalista, como notabilizada por Antoine Jeammaud, e cuja primazia este atribui a Gérard Lyon-Caen.4

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O direito do trabalho serve tanto para legitimar a ordem jurídica em que o trabalho humano se subordina a outrem por meio de institutos jurídicos como a liberdade contratual e a propriedade, assegurando ainda certa estabilidade e igualdade concorrencial entre empresas, quanto para colocar limites à tendência autodestrutiva do mercado capitalista de trabalho, em desmesurar-se na exploração da força de trabalho. Ao fazêlo, cria um espaço de conflito juridicizado, canalizando a luta social para este campo, alimentando expectativas dos trabalhadores que, para serem mantidas, precisam defrontar-se com um horizonte de alguma efetividade nessa proteção.

A valorização social do trabalho como um bem essencial com valor moral e a sua juridificação também seguem essa mesma dualidade. A história demonstra que a utilidade social do trabalho não assegura um reconhecimento positivo das pessoas que trabalham.5Não há como negar a utilidade social do trabalho dos escravos, embora a escravidão esteja baseada na desqualificação, como pessoas degradadas à condição de coisa, daqueles de cujo trabalho a sociedade escravocrata dependia. Mesmo na modernidade supostamente promotora da liberdade de trabalhar, igualdade e fraternidade, a utilidade social do trabalho não bastou para uma valorização social da atividade de trabalho e daqueles que têm no trabalho o seu modo de vida. Isso fica bem exemplificado na insuspeita dicção do abade Sieyès, um dos pais intelectuais da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, deixando claro a que “homem” ela se referia:

Entre os desgraçados destinados aos trabalhos penosos, produtores do prazer de outrem e recebendo somente de que se sustentar seu corpo sofrido e cheio de necessidades, nessa multidão imensa de instrumentos bípedes, sem liberdade, sem moralidade, que não possui senão mãos que ganham pouco e uma alma absorvida, é isto o que chamam de homens? Haverá dentre eles um único que seja capaz de ser admitido em sociedade6É marcante, nesta citação, que, se, de um lado, “os prazeres de outrem” dependem do trabalho desses “instrumentos bípedes”, inábeis à designação de homens –e as leis de vagabundagem largamente utilizadas, lá e cá, para obrigar a venda da força de trabalho7, atestam a sua utilidade econômica–, por outro lado, eles não são dignos de

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pertencerem à sociedade, de serem reconhecidos como cidadãos.8O reconhecimento de um valor social positivo do trabalho na modernidade capitalista não advém da utilidade em si do trabalho. Ele somente chega por meio do suporte de um regulamento jurídico que retire o trabalho da indignidade social. Nesse processo, a legislação do trabalho teve uma participação central, não como um mediador externo às próprias relações de trabalho, mas um mediador que igualmente foi produto das lutas dos trabalhadores no interior da sociedade do capital.

O reconhecimento jurídico, neste caso, potencializa, cria espaços de pertencimento e autoestima e fomenta as lutas reivindicatórias. Foi através da mediação conflitiva do direito do trabalho, ponderando a contratualidade civil –em especial pondo limites à livre dispensa e à livre fixação de salários e jornada–, que o trabalho passou a ter uma dimensão de suporte de reconhecimento social, além de mero objeto de inter-câmbio ou matéria do direito penal. A par da utilidade econômica, passou também ser encarado do ponto de vista da cidadania social, como condição jurídica formada por direitos e deveres e baseada no reconhecimento do pertencimento a uma coletividade.9

Assim é que o modelo do trabalho assalariado, juridicamente regulado pelo Direito do Trabalho, ao passo que serviu para legitimação da exploração do trabalho e para a exclusão de outras formas não capitalistas de trabalhar, ao mesmo tempo tornou-se, inegavelmente, um dos principais instrumentos de integração social e construção cultural nas sociedades capitalistas.10

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A constitucionalização do valor social do trabalho na Constituição de 1988, erigido, junto com a livre iniciativa, à condição de um dos fundamentos da República (art. 1º, IV) e integrando todo um intenso bloco constitucional de valorização do trabalho humano, juntamente com direitos fundamentais e princípios associados ao trabalho como elemento essencial da própria dignidade humana, alcança um novo patamar no processo de reconhecimento jurídico do trabalho. Pois, para a ordem constitucional, toda a ordenação social está voltada para a realização da dignidade das pessoas humanas. Nesse telos constitucional, assume, o trabalho, um aspecto central, sem o qual não se efetiva a autorrealização individual e coletiva do humano em termos de dignidade. O trabalho, assim, é percebido não só em sua utilidade social, na produção de bens e de valor econômico, mas como um valor social também naquilo que ele tem de elemento existencial da vida digna como expressão de necessidades humanas de atuar sobre o mundo, sobre os outros e com estes e sobre si, humanizando o mundo e transformando-se. Também se compreende, aí, o valor do trabalho, ele mesmo, como um bem, um conjunto de atividades e relações que realiza necessidades humanas de autorrealização, desenvolvimento da corporalidade, de construção de vínculos éticos e de solidariedade e de aprendizado do viver-junto, com enormes repercussões sobre o político.11Valem, em nosso contexto, as palavras de Peter Häberle, para quem o trabalho, estando situado no centro da identidade do ser humano e do cidadão, “asume actualmente una jerarquía tan alta, tanto en la perspectiva del ciudadano (...) como en la comunidad de los libres y iguales, que resulta necessário darle um sitio igualmente fundamental en la reconstrucción teórica del Estado constitucional.12A Constituição olha para o passado de abusos e instrumentalização sobre o trabalho na experiência de grande parte da população e busca, ainda que não transformála inteiramente, mas ao menos reconhecer, valorizar e proteger o enlace indissolúvel entre trabalho e dignidade, nas condições sociais críticas que o presente exibe.

Em nosso direito, a valorização constitucional do trabalho humano, como elemento essencial à dignidade, veio a complementar-se com o resgate de uma verdadeira fratura no reconhecimento da igualdade que fora deixada aberta, pelo constituinte de 1988, no parágrafo único do art. 7º da Constituição. A existência de toda uma imensa categoria de trabalhadores ditos domésticos, subreconhecidos por um estatuto de inferioridade em relação aos demais, o que significava um desvalor social, constituía-

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se em dívida de cidadania que vem de ser substancialmente resgatada pela Emenda Constitucional 72/2013. Esta afastou a grande parte das injustificadas exclusões dos domésticos em relação a direitos fundamentais dos trabalhadores, o que certamente atuará no sentido de contribuir para a luta social em prol do reconhecimento de igual dignidade a essa grande parcela da população que vive do seu próprio trabalho, em nossa sociedade.13Em suma, no atual estágio histórico do sistema jurídico brasileiro, como fundamento da República (art. 1º, IV), da ordem econômica (art. 170, caput), da ordem social (art. 193), o valor social do trabalho incide normativamente sobre toda a organização da vida da sociedade brasileira, defrontando-se, naturalmente, com obstáculos e limites fáticos e jurídicos que o contrapõem. Os momentos que constituem essa afirmação são a seguir explicitados.

2. Dignidade, necessidades, bens, direitos e valores jurídicos

Para compreendermos a noção de valores jurídicos, é preciso fixar o encadeamento de conceitos hoje absorvidos pelos sistemas constitucionais, o que passa, antes, pelas noções de dignidade, necessidades, bens e direitos.

Primeiramente, cabe precisar o conceito de dignidade humana, cuja...

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