A profanação do sagrado la profanación de lo sagrado

AutorNilson Tadeu Reís Campos Silva
CargoMestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina; doutorando pela Instituifáo Toledo de Ensino.
Páginas411-422

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Introdução

A peregrinação do Homem pela Terra, desde os primórdios, tem sido matizada pela aura de sacralidade atribuída aos indivíduos que logravam ascensão sobre os demais. Page 412

Mesmo nos panteoes mitológicos helénicos, africanos ou nórdicos, a noção do sagrado era imanente, como legitimadora do poder mágico de Zeus, Oxalá ou Odin, sobre os demais, tal qual sucedia com os xamás tribais e os sacerdotes hebraicos.

O surgimento de reis, imperadores, chefes tribais e de papas, foi, em grande parte, autorizado pela absorção ou delegação desse poder divinizado: a noção mítica servia de blindagem para que os suscetíveis ao exercício do poder náo arrostassem a divindade ou o soberano.

2. Da construção de conceitos

O processo de criação dos Estados sempre partiu da organização das sociedades em nações, focada na idéia de transferencia ou legitimação da soberanía: assim tem sido desde as cidades-estado helénicas; da antiga Roma; na Idade Medieval e na Idade Moderna, náo sendo muito diverso o enfoque ainda nos días de hoje.

Como a noção de Estado implica na coexisténcia daqueles que detém o poder com aqueles que legitimam esse poder, a natural conflituosidade exigiu a formação de constituições cujo núcleo rígido preservasse o regime político contra a corrosão trazida pelo embate dentre os diversos estames sociais.

Se BODIN foi um dos primeiros a buscar a definição de soberanía, como anota FioRAVANTI,1 foi HOBBES, com seu Leviatá, quem encetou o passo inicial significativo para explicar a soberanía: em um primeiro momento, com a autorização2 derivada do consenso de indivíduos voltado a instituição de um poder soberano capaz de expurgar os perigos das relações interpessoais, e em um segundo, com a representação outorgada pelo coletivo dos súditos: o povo, cujos direitos, em especial o da propriedade, poderiam e deveriam, assim, ser protegidos pelo soberano.

HoBBES, em síntese, defendia que inexiste outra fonte de lei senáo a vontade do soberano, embasando a idéia do Estado divinizado que se fez presente desde a ruptura entre Estado e Igreja, promovida por Felipe IV, o Belo.

Com ROUSSEAU a soberanía foi definida como pertencente ao povo: o Contrato Social partia da idéia da necessidade de um pacto em que os indivíduos renunciassem a liberdade natural para adquirirem a liberdade civil, como povo, consistente na garantía de estar governado por uma lei geral, fruto da totalidade desse corpo político soberano.

Daí advém a idéia de inoponibilidade ao poder soberano de qualquer norma fundamental, mesmo que para garantir a tutela dos direitos dos indivíduos, premissa ainda subjacente ás Constituições atuais. Page 413

Mas, e especialmente, o deslocamento da titularidade da soberanía para o povo levou ao fim das constituições medievais, nas quais a monarquia defendia sua legitimidade negociando com outras instituições políticas.

Com a tríplice divisão dos poderes do Estado preconizada pela teoría clássica dos sáculos XVII e XVIII, com relevo a MONTESQUIEU, a aura de sacralidade passou a imantar os Poderes Ejecutivo, Legislativo e Judiciário, autorizando e legitimando, ao primeiro, administrar e executar as leis; ao segundo criar as leis; e, ao terceiro julgar as controvársias advindas da submissão ou náo a lei.

3. Das tensões entre estado, sociedade e individuo

Esse modelo de poder estatal, simetricamente dividido em tres esferas de atual, leva a ingenua e utilitarista crenca segundo a qual as intervenções estatais colaboram necessariamente para a construção da nação ideal: esperam-se eficientes mecanismos que maximizem o bem-estar social.

Contudo, como os círculos de poder atuam de forma assimátrica, acabam por inverter essa expectativa de eficiencia no exercício da soberanía, o que faz suscitar a questáo: onde radica o problema -no Estado, ou no ethos social que o organizou ou que o legitima como detentor do poder?

Quando se frustra a expectativa depositada nos exercentes do poder, a crenca na legitimidade da soberanía esboroa-se, e o atá entáo sagrado transmuda-se em objeto de profanação: tudo o que era sagrado é profanado?3

4. Da perda de referência

A evolução histórica e a conquista dos chamados direitos sociais, notadamente a partir do sáculo XIX, levou a genese do Estado Social, substitutivo do Estado Liberal em que a intervenção estatal tinha como dique intransponível os direitos fundamentais dos indivíduos, tais como liberdade pessoal, política e económica.

Os direitos sociais compreendem, em apertada suma, os direitos de participação no poder político e na distribuição da riqueza. Vale dizer: o exercício da soberanía deve, neste Estado Social, implicar em interação do Estado com a sociedade civil.

Paradoxalmente, essa interação significou a ruptura do obstáculo a intervenção estatal na esfera dos indivíduos, com proeminencia da tese defendida Page 414 dentre outros por Bobbio, segundo a qual o bem estar comum é maior do que o somatório dos bens individuais.

A superioridade e autoridade de uma forca coletiva que sintetiza a expressão da soberanía, idealmente engendrada na sociedade civil, sofre os influxos políticos do Estado que sonega o acesso dos indivíduos aos bens públicos e aos seus próprios direitos, ditos humanos e redimensionados com sociais.

A falta de visibilidade da natureza e do papel do Estado, decorrente dentre outras razoes da obsolescencia das idéias da sacralização da Instituição e de análises reducionistas da evolução histórica, mostra uma realidade desfocada, aprisionada em conceitos cujos valores perderam a validade no contexto atual, e leva a perplexidade diante da profanação.

A sacralização do Estado é uma idéia central por servir de blindagem a ameaca das incertezas: serve para proteger os indivíduos e a sociedade da apreensão das ameaças ínsitas ás mudancas e ao mesmo tempo para manter a estabilidade do sistema.

A mutação do sistema exige um peregrinar em zonas de incerteza, uma reconstrução de bases teóricas, uma redefinição de elementos vitais a sobrevivencia, a elaboração de um discurso plausível em termos de eficiencia, eficacia e de efetividade. Daí, a postura refratária e destrutiva a profanação da crenca.

A rigor, a vulnerabilidade da crenca em um Estado estável náo é nova: quando Ptolomeu, no Século II, defendeu a teoría de que a Terra era o centro do Universo, favorecido pelo obscurantismo religioso da Idade Média e pela Igreja, aquela confianza na estabilidade estatal ganhou uma sobrevida superior a 14 séculos.

No Século XVII, quando Galileu destronou a teoría geocéntrica com a teoría heliocéntrica de Copérnico, criou-se a instabilidade do Estado, com a retirada do status da própria Terra como centro do Universo.

Agora, no Século XXI, o ataque ao Estado estável ultrapassa novos limites, com a experiéncia da dissolução real e ameacadora das organizações e instituições estáveis, que servem de áncoras para a personalidade e para os sistemas de valores. Mais ainda: o Estado está se tornando menos real.

Este é um fenómeno geral e náo isolado ou periférico: a ameaca a estabilidade de instituições estabelecidas, como o Estado, atinge as teorias e as ideologias associada a elas.

Instituições como Estado, Igreja, classe operária organizada, Universidade, dentre outras, trazem arraigados corpos de teorias que constituem maneiras de olhar o mundo, e ideologias que governam a postura e a ação.

Quando uma dessas Instituições torna-se instável, suas teorias e ideologias são ameacadas e as áncoras para a identidade que elas fornecem são perdidas. A perda desse elo referencial contribui para o ataque a estabilidade da própria pessoa.

Todavia, se há inevitabilidade na ocorréncia de mutações,4 a ampliação do nível de consciéncia5 - das Instituições e dos indivíduos, é uma das respostas mitigadoras do choque e do pánico causados pela profanação. Page 415

Isto porque a conscientização leva a uma postura proativa, a ações afirmativas, a reconstrução do Ser e ao abandono do reativismo.

A...

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