Crimes da ditadura militar e o 'caso araguaia': aplicação do direito internacional dos direitos humanos pelos juízes e tribunais brasileiros

AutorLuiz Flávio Gomes - Valerio De Oliveira Mazzuoli
CargoDoutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri. Mestre em Direito Penal pela USP. Professor de Direito Penal e Processo Penal. Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG, em São Paulo. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001) - Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa. ...
Páginas1-34
LETRAS JURIDICAS NÚM. 14 PRIMAVERA 2012 ISSN 1870-2155
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CRIMES DA DITADURA MILITAR E O “CASO ARAGUAIA”:
APLICAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS
HUMANOS PELOS JUÍZES E TRIBUNAIS BRASILEIROS
CRIMES OF THE MILITARY DICTATORSHIP AND THE
“ARAGUAIA CASE”: APPLICATION OF INTERNATIONAL
HUMAN RIGHTS LAW BY THE BRAZILIAN JUDGES AND
COURTS
LUIZ FLÁVIO GOMES1
VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI2
RESUMO: O artigo examina a condenação internacional do Brasil no chamado “Caso
Araguaia”, em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos anulou a Lei de Anistia
brasileira, abrindo a possibilidade de revisão (pelo Judiciário brasileiro) dos crimes de
tortura, morte e desaparecimento cometidos no Brasil durante o período da ditadura
militar (1964-1985).
1 Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri. Mestre em Direito Penal pela
USP. Professor de Direito Penal e Processo Penal. Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG, em
São Paulo. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a
2001).
2 Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa. Doutor summa cum laude em Direito
Internacional pela UFRGS. Mestre em Direito pela UNESP. Professor Adjunto de Direito
Internacional Público e Direitos Hum anos da UFMT. Professor da Rede LFG, em São Paulo.
Membro da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas ABCD. Advogado e
consultor jurídico.
LETRAS JURIDICAS NÚM. 14 PRIMAVERA 2012 ISSN 1870-2155
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PALAVRAS-CHAVE: Crimes da ditadura militar; condenação internacional; Corte
Interamericana de Direitos Humanos; Lei de Anistia.
ABSTRACT: This article analyzes the international condemnation of Brazil in the
“Araguaia’s Case”, in which the American Court of Human Rights overturned the
Amnesty Law in Brazil, opening the possibility of reviewing (by Brazilians judicial
power) the crimes of torture, death and disappearance occurred in Brazil during the
military dictatorship (1964-1985).
KEYWORDS: Crimes by the dictatorship; international condemnation, Inter-American
Court of Human Rights, Amnesty Law.
_______________________________________________________________________________
SUMÁRIO: 1. In trodução; 2. O julgamento relativo ao “Caso Araguaia” e sua s repercussões no
Brasil (especialmente nos Ministros do STF); 3. A internacionalização dos direitos humanos; 3.1.
Complementaridade da tutela internacional; 3.2. Interdependência entre o direito internacional e o direito
interno; 3.3. Do princípio do “domestic affair” ao do “international concern”; 3.4. Estado de direito
constitucional e Estado de direito internacional; 3.5. Estrutura normativa do Estado de Direito
internacional; 3.6, A nova construção de um “direito dialógico”; 4. Adesão formal d o Brasil ao direito
internacional dos direitos humanos; 5. Reconhecimento da força normativa (hierarquia superior) do
direito internacional dos direitos humanos; 6. Respeito e internalização (aplicação) do direito
internacional dos direitos humanos pelos juízes e tribunais locais; 7. Conc lusão Referências
bibliográficas. Fecha de recepción 21/02/2012. Fecha de aceptación 30/03/2012.
1. Introdução
Um dos maiores desafios do direito penal no século XXI, sem sombra de
dúvida, será conciliar sua clássica formatação legalista, vinculada à soberania de cada
país, com as novas ondas (terceira e quarta ondas) do internacionalismo. A Corte
Interamericana de Direitos Humanos na sua sentença de 24 de novembro de 2010
declarou a invalidade da Lei de Anistia brasileira que acobertava os crimes cometidos
pelos agentes do Estado durante a ditadura (1964-1985). Isso significa a obrigação do
Brasil de apurar, processar e, se for o caso, punir todos esses delitos. O STF, em abril
de 2010, havia declarado a validade da Lei de Anistia. Ocorre que sua decisão não
entrou no tema da inconvencionalidade da lei citada. A Justiça internacional está
mandando o Brasil investigar tais crimes. Para o STF isso não seria possível. Como
resolver todos esses conflitos típicos da pós-modernidade? A Justiça internacional vale
mais que o STF? Como fica a soberania do Brasil? Os juízes brasileiros são obrigados a
respeitar a jurisprudência da Corte Interamericana?
LETRAS JURIDICAS NÚM. 14 PRIMAVERA 2012 ISSN 1870-2155
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Este ensaio pretende responder todas essas questões intrincadas assim como
demonstrar qual a eficácia das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos
no Brasil, em especial após a condenação do país no “Caso Araguaia”, em que a Corte
da OEA anulou a Lei de Anistia brasileira, abrindo a possibilidade de revisão (pelo
Judiciário brasileiro) dos crimes de tortura, morte e desaparecimento cometidos no
Brasil durante o período da ditadura militar (1964-1985).3
Nas linhas abaixo procuraremos demonstrar qual a eficácia das decisões dos
tribunais internacionais (de direitos humanos) no direito brasileiro, bem assim como o
judiciário nacional deve cumprir tais decisões, em prazo razoável.4
2. O julgamento relativo ao “Caso Araguaia” e suas repercussões no Brasil
(especialmente nos Ministros do STF)
Logo que anunciada a sentença de 24 de novembro de 2010 da Corte
Interamericana de Direitos Humanos sobre o Caso Araguaia (desaparecimento de
pessoas durante a ditadura militar brasileira), todos constatamos vários focos de
rejeição à referida sentença, alguns partindo inclusive de Ministros do Supremo
Tribunal Federal. Essa refutação (de certa forma contundente) naturalmente nos conduz
a refletir sobre a aceitação e obrigatoriedade de aplicação do direito internacional dos
direitos humanos pelos juízes e tribunais brasileiros.
Comecemos pelas declarações do Ministro Cezar Peluso, que é o atual
Presidente do STF: “A decisão da Corte só gera efeitos no campo da Convenção
Americana de Direitos Humanos… caso as pessoas anistiadas sejam processadas, é
só recorrer ao STF. O Supremo vai conceder habeas corpus na hora”. Disse ainda
que a decisão da Corte “só vale no campo da convencionalidade”.5
3 Sobre o dever de tutela judicial dos Estados que fazem parte do sistema interamericano de direitos
humanos, v. SABSAY , Daniel A., El amparo como garantia para el aceso a la jurisdicción en defensa de
los derechos humanos, in La aplicación de los tratados sobre derechos humanos por los tribunales
locales (orgs. Abregú & Courtis), Buenos Aires: CELS, 2004, p. 229 e ss. Cf. ainda, KAWABATA, J.
Alejandro, Reparación de las violaciones de derechos humanos em el marco de la Convencion Americana
sobre Derechos Humanos, in La aplicación de los tratados sobre derechos humanos por los tribunales
locales, cit., p. 351 e ss.
4 Cf. ALBANESE, Susana. El plazo razonable em los procesos a la luz de los órganos internacionales, in
La aplicación de los tratados sobre derechos humanos por los tribunales locales, cit., p. 247 e ss.
5 V. Jornal O Estado de S. Paulo, de 16.12.10, p. A12; e Jornal Folha de S. Paulo, de 16.12.10, p. A15.

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