Do estado de direito internacional e o valor dos tratados de direitos humanos

AutorLuiz Flávio Gomes
1. Introdução

O Estado de Direito internacional (ou transnacional) nada mais é que o Estado de Direito constitucional acompanhado (complementado) de uma perspectiva internacional (atrelada à tutela dos direitos humanos). Uma coisa é o Estado de Direito constitucional regido pela Constituição de cada país, modelo de Estado de Direito esse que é criado e aplicado pelos legisladores e juízes respectivos. Outra bem distinta consiste em enfocar esse mesmo Estado de Direito sob a ótica internacional (regional ou comunitária ou global).1

Não são dois modelos excludentes, ao contrário, são complementares. No caso brasileiro, aliás, complementares e sucessivos (porque somente agora, no princípio do século XXI, é que a nossa jurisprudência começou a prestar atenção seriamente no aspecto internacional do Estado de Direito constitucional - sumamente relevante, nesse sentido, a posição do STF, adotada no dia 03.12.08, no RE 466.343-Sp e HC 87.585-TO.

Estudar hoje o Estado de Direito constitucional sem o complemento da internacionalidade (ou transnacionalidade) significa conhecer apenas a metade do que se deve saber. E se o estudante ou operador jurídico sabe manejar tão somente os códigos (ou seja: a legalidade), conhece apenas uma pequena parcela do que se deve saber. Para além da legalidade (Estado de Direito legal) está a constitucionalização e a internacionalidade (transnacionalidade) do Direito.

Eis as três palavras-chave que podem exprimir as evoluções do Estado, do Direito e da Justiça: legalismo, constitucionalização (ou neoconstitucionalização) e internacionalização (ou transnacionalização).

2. Estrutura normativa do Estado de Direito internacional (ou transnacional), pluralidade de fontes normativas e nova pirâmide jurídica

Impõe-se desde logo bem compreender a (exageradamente) complexa estrutura normativa do Estado de Direito internacional (transnacional): nele possuem relevância ímpar não apenas as leis e a Constituição, senão também o Direito internacional dos Direitos Humanos (DIDH - ou seja: tratados de convenções de direitos humanos). Destarte, o Estado de Direito internacional é constituído de normas constitucionais, infraconstitucionais e internacionais. Como se vê, o Estado de Direito internacional (transnacional) nada mais significa que o resultado (o novo produto evolutivo) dos modelos de Estado anteriores (legal e constitucional) mais o complemento da internacionalidade ou transnacionalidade, que tem como eixo central a tutela dos direitos humanos (para isso foram desenvolvidos vários conjuntos normativos internacionais assim como uma enorme estrutura judiciária supranacional).

A internacionalidade (transnacionalidade) dos direitos humanos (nisso reside a terceira onda), que constitui a essência da nova e evoluída configuração do Estado de Direito constitucional, merece (neste momento) expressivo e retumbante destaque no nosso país em virtude do seguinte:

(a) somente agora (depois de décadas de atraso jurássico) a Corte Suprema brasileira reconheceu (em 03.12.08) o valor supralegal (Gilmar Mendes) dos tratados internacionais de direitos humanos (RE 466.343-SP e HC 87.585-TO); foi vencedora essa tese do Min. Gilmar Mendes (por cinco votos a quatro), não a tese do valor constitucional (do Min. Celso de Mello);

(b) em matéria de direitos humanos já se pode falar no Brasil (finalmente) numa quinta instância (de Justiça), que é a Corte Interamericana de Direitos Humanos (sediada em San Jose da Costa Rica), que integra (ao lado da Comissão Interamericana de Direitos Humanos) nosso sistema (regional) interamericano de proteção dos direitos humanos.2De muitas maneiras pode-se explicar a presença dessa quinta instância na vida do brasileiro. Mas talvez a mais contundente esteja no fato de a Corte estar começando a condenar o Brasil nas suas violações aos direitos humanos (os casos Ximenes Lopes e Maria da Penha são emblemáticos: A Corte e a Comissão determinaram o pagamento de indenização em virtude da violação de direitos humanos).

O Direito dos Direitos Humanos (DDH), seja em sua dimensão interna como internacional, que ocupa posição de inquestionável destaque no Estado de Direito Internacional, é um conjunto normativo bastante complexo (mas, ao mesmo tempo, é o único que parece reunir todas as disposições otimizantes que podem possibilitar a convivência humana harmoniosa na era pós-moderna).

1.1. Pluralidade de fontes normativas

A primeira e principal característica desse modelo de Estado reside na pluralidade de fontes normativas hierarquicamente distintas. Aliás, hoje, somente a complexa (e correta) articulação de todas as suas distintas fontes normativas (normas constitucionais, internacionais e ordinárias) é que possibilita (a) aproximar a uma justa solução para os conflitos, sobretudo os que envolvem os direitos humanos e (b) redimensionar o verdadeiro conteúdo do devido processo legal.

O estudante e o operador jurídico em geral assim como o juiz de direito em especial, neste novo modelo de Estado (EDI), não podem desconhecer os três conjuntos normativos mencionados: constitucional, internacional (transnacional) e infraconstitucional. Já não se pode estudar (nem ensinar) somente os Códigos (e as leis). Jurista completo é o que estuda as leis (codificadas ou esparsas), a Constituição e o Direito internacional.

Existe hierarquia entre tais normas (legais, constitucionais e internacionais)? Até recentemente nosso Direito produzido pelo constituinte, pelo legislador ordinário e pelos juízes só reconhecia hierarquia superior para as normas constitucionais. Velha jurisprudência do STF (com origem nos anos 70 do século XX - RE 80.004) dizia que os tratados internacionais, inclusive de direitos humanos, valiam tanto quanto a lei. Leis e tratados ocupavam o mesmo patamar (inferior). Normas superiores eram apenas as constitucionais.

Essa tradicional e provecta estrutura ou pirâmide jurídica (ou seja: essa forma de compreender o Direito sob a ótica legalista positivista ou kelseniana) está esgotada. A antiga pirâmide de Kelsen foi definitivamente sepultada pelo STF, no seu julgamento histórico do dia 03.12.08 (RE 466.343-SP e HC 87.585-TO). Neste julgamento o STF admitiu o valor supralegal dos tratados de direitos humanos.

Dois foram os votos marcantes nesse julgamento (de Gilmar Mendes e Celso de Mello): são divergentes na intensidade mas convergentes na adoção de um novo modelo de Estado. Estão demarcando um novo caminho, um novo horizonte (ou seja: uma nova forma de constituição da pirâmide normativa brasileira).

Já não há como evitar a conclusão de que a soberania do Estado brasileiro deve conviver com a validade do Direito internacional (transnacional). O Estado brasileiro já não é só (a partir da perspectiva aberta pelos votos referidos, que foram acompanhados por outros sete Ministros) um Estado de Direito constitucional: agora passou a ser também um Estado de Direito internacional (transnacional).

1.2. Nova pirâmide formal do Direito

A nova pirâmide normativa concebida a partir de algumas decisões do STF (HC 87.585-TO, RE 466.343-SP, HC 90.172-SP, HC 88.420-PR) é bem distinta daquela que, normalmente, sob os auspícios de Kelsen, ainda continua sendo ensinada em algumas faculdades brasileiras. Espera-se que essa verdadeira revolução seja bem compreendida por todos os estudantes e operadores jurídicos. Desde o dia 03.12.08 já não há como negar o valor supralegal dos tratados de direitos humanos (STF, RE 466.343-SP e HC 87.585-TO).

2. Proteção universalizante das vítimas assim como dos acusados que se transformam em vítimas

O escopo de proteção do Direito dos direitos humanos, de outro lado, como vêm reconhecendo tanto a Comissão como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, não está voltado exclusivamente para o acusado (pessoa que está sujeita à imposição de uma sanção penal estatal), senão também para a vítima (sobretudo quando ela é ofendida por agentes do Estado ou quando o Estado não a ampara nas suas postulações decorrentes de violações de direitos humanos).

De acordo com CAFFERATA NORES:3 "As garantias procuram assegurar que nenhuma pessoa possa ser privada de defender seu direito vulnerado (pelo delito) e reclamar sua reparação (inclusive penal) diante dos órgãos jurisdicionais, assim como que nenhuma pessoa possa ser submetida a uma pena arbitrária (imposta pelo Estado ou pelos agentes do Poder Judiciário) (...) a vítima conta com o direito de tutela judicial (arts. 1.1., 8.1 e 25 da CADH)". Os acusados que se submetem a algum abuso ou arbitrariedade do Estado transformam-se em vítimas da persecução penal, ou seja, são tão vítimas quanto suas próprias vítimas.

3. O valor da dignidade humana e o avanço no Brasil do Direito internacional dos direitos humanos

O DDH, ademais, parte da premissa óbvia de que o ser humano, só pelo fato de ser "humano", já conta com dignidade, logo, com uma série de direitos e garantias positivados nas leis, constituições e tratados e...

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