Crítica à razão empreendedora: Sobre a função ideológica do empreendedorismo no capitalismo contemporâneo

AutorCarla Appollinario de Castro - Tiago de García Nunes
CargoMestre e doutoranda em Ciências Sociais e Jurídicas, pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito, PPGSD/UFF e professora no Departamento de Direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro/ITR - Doutorando em Ciências Sociais e Jurídicas, pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito, PPGSD/UFF
Páginas117-135

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CRÍTICA À RAZÃO EMPREENDEDORA:
SOBRE A FUNÇÃO IDEOLÓGICA DO EMPREENDEDORISMO NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
1Carla Appollinario de Castro2Tiago de García Nunes3Resumo: O trabalho analisa os principais argumentos associados ao fomento do empreendedorismo, sintetizando os pressupostos políticos, econômicos e sociais a partir dos quais tem sido implementada, no contexto brasileiro. Nossa hipótese defende a existência de uma função ideológica no discurso e nas práticas empreendedoras disseminadas ao longo das duas últimas décadas. Percebemos uma espécie de retorno a um dos motivos mais caros ao liberalismo clássico, ou seja, à ideia de natureza humana, com ênfase na responsabilidade individual.

Palavras-chave: Desemprego, informalidade, neoliberalismo, empreendedorismo, questão social.

Abstract: This article analyzes the main arguments related to the promotion of entrepreneurship, trying to summarize the political, economic and social assumptions that have been implemented in the Brazilian context. Our main hypothesis concerns the existence of an ideological function in the discourse and corporate practices that have been spread over the past two decades. However, we see a kind of return to one of the most expensive reasons of classical liberalism, that is, the idea of human nature, with the consequent emphasis on individual responsibility.

1 Artículo traducido del portugués por Alejandro Rosillo Martínez. Artículo recibido: 07 de octubre de 2013; aprobado: 17 de febrero de 2014.
2 Mestre e doutoranda em Ciências Sociais e Jurídicas, pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito - PPGSD/UFF e professora no Departamento de Direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro/ITR. Correo-e: carlaappollinario@ig.com.br
3 Doutorando em Ciências Sociais e Jurídicas, pelo Programa de Pós-Graduação em SoDoutorando em Ciências Sociais e Jurídicas, pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito - PPGSD/UFF e professor da Universidade Católica de Pelotas. Correo-e: tiagodegarcianunes@yahoo.com.br

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Keywords: Unemployment, informality, neoliberalism, entrepreneurship, social question.

1. Introdução

As principais transformações ocorridas no mundo do trabalho –decorrentes da globalização e do neoliberalismo– manifestaram-se, no campo econômico, sob a forma da reestruturação produtiva, e no campo social, por meio da flexibilização, desregulamentação e relativização dos direitos dos trabalhadores4, tendo como consequência, a precarização das condições e relações de trabalho. Tais medidas compõem um novo regime do capital, “readaptado” ao mundo globalizado e neoliberal, denominado de “acumulação flexível” e marcam a passagem do paradigma da sociedade do trabalho para a sociedade neoliberal, esta última instituída no contexto brasileiro a partir do início dos anos 90.

Passadas algumas décadas, já é possível concluir que esse conjunto de transformações inviabilizou a manutenção do emprego, consolidou o desemprego crônico5ou

estrutural e obrigou o trabalhador a se sujeitar às regras impostas pelo “mercado”, sendo ideologicamente induzido a acreditar que tal reestruturação produtiva era necessária e inevitável como forma de se manter no mercado de trabalho. Tais mudanças acentuaram, ainda, a existência de uma segunda categoria de trabalhadores, denominados como “informais”, indivíduos que ficaram inteiramente alijados do mercado de trabalho formal e da proteção da tutela do Estado.

Neste contexto de reestruturação produtiva, foi possível observar, ainda, a ampliação, sem precedentes históricos, de uma terceira categoria, formada pelos “inempregáveis”, i.e., aqueles para os quais não há mais lugar, segundo uma forma tradicional, na nova divisão social do trabalho; estes não devem ser confundidos com o exército industrial de reserva analisado por Marx, formado por pessoas que ficavam à espera de uma convocação para voltar a ocupar um posto de trabalho, o que poderia ocorrer – e, normalmente, ocorria - em ciclos de expansão da economia.

Verifica-se que os “inempregáveis”, com o advento da incessante renovação tecnológica que desaloja imensos contingentes de indivíduos do mundo da produção, 4 Em pesquisa anterior, tivemos a oportunidade de esboçar um histórico da principal legisEm pesquisa anterior, tivemos a oportunidade de esboçar um histórico da principal legislação produzida durante a Era Vargas, com repercussão até os dias atuais, nas esferas social, previdenciária e sindical, bem como seu processo de flexibilização após a ofensiva neoliberal, responsável por precarizar os empregos formais, no que se refere às formas de contratação, remuneração, jornada de trabalho e solução dos conflitos. Nesse sentido, remetemos para Castro, Carla Appollinario de. Das fábricas aos cárceres: mundo do trabalho em mutação e exclusão social, Brasil, 2010, pp. 87-89.
5 Mészáros, István. O poder da ideologia, Boitempo, São Paulo, 2004, p. 17.

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não servem mais como exército industrial de reserva e, assim, passaram a formar um contingente significativo de pessoas para as quais não há lugar tradicional (no sentido de emprego formal, regular, pago e com todos os direitos sociais) no sistema produtivo do capitalismo tardio.

Uma perfeita caracterização desse novo cenário é materializada pela tendência de agravamento das formas precarizadas de trabalho, expressas pelos trabalhadores temporários, em tempo parcial, terceirizados, subcontratados, cooperativados e ainda pelas diversas formas de informalidade (trabalhadores por conta própria ou trabalhador assalariado sem registro em carteira).

Por isso, enfatizamos o quanto o empreendedorismo não atrai apenas os excluídos sociais (desempregados/trabalhadores informais), mas também os trabalhadores precarizados (subempregos). Isto porque mesmo os empregos criados no contexto neoliberal foram acompanhados de contratos de trabalho realizados sob um arcabouço jurídico-legal que já havia institucionalizado as formas precárias, mediante a flexibilização do tempo de trabalho (jornada de trabalho), da remuneração, das espécies de contratação, da alocação do trabalho e, por fim, das formas de resolução dos conflitos (inclusive, com amplo incentivo à solução direta).

No que se refere, em especial, à questão da informalidade, apesar de ser possível observar uma discreta queda nos últimos anos, ainda assim seus índices não podem ser negligenciados pela teoria social, na medida em que parecem revelar um aspecto de continuidade no desenvolvimento econômico brasileiro, como sugerem os dados abaixo:

Grau de informalidade - definição II6
Anual de 1992 até 2009 - Unidade: (%) 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 56,8 57,5 * 57,2 56,7 56,7 56,9 57,6 *

2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 55,7 55,8 54,8 54,1 53,3 52,0 51,1 48,9 48,4

(*) Dados não informados
Elaborado a partir de Disoc/IPEADATA (2011) FONTE: IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

6 Este resultado é obtido por meio de dados veiculados na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE. A definição II da taxa de informalidade, de acordo com a metodologia, corresponde ao resultado da seguinte divisão: (empregados sem carteira + trabalhadores por conta própria + não-remunerados) / (trabalhadores protegidos + empregados sem carteira + trabalhadores por conta própria + não-remunerados + empregadores).

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Marca ainda esse período, sob a ofensiva neoliberal, a não consolidação de um efetivo Estado de bem-estar social, mas, apenas, uma recente e restrita experiência de proteção ao emprego, projeto que foi abortado nos anos 90 e que em nada se parece com a utopia da era fordista de incorporação pelo trabalho. A principal consequência que resulta da atual combinação entre desemprego estrutural e informalidade, consiste em um aumento considerável na quantidade de “indivíduos [que são] colocados em situação de flutuação na estrutura social”7.

É preciso notar que tal fenômeno geral revela-se ainda mais grave quando consideramos as peculiaridades do contexto brasileiro, caracterizado por um processo de perversa exclusão social8, que contribui efetivamente para a continuidade histórica da produção de desigualdades sociais entre as classes que compõem a sociedade brasileira.

Concomitantemente a essa dinâmica, que alia desemprego com alto índice de informalidade após a adoção do receituário neoliberal, foi produzida, recentemente, legislação que introduziu a figura jurídica do microempreendedor individual - MEI9,

apresentado por seus defensores não apenas como solução para o desemprego estrutural e a informalidade, como também para as contradições inerentes à relação capital/trabalho.

Na prática, todo trabalhador informal que exerça uma das atividades previstas na Resolução n 58, do Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN)10, pode realizar sua formalização, pela internet, no Portal do Empreendedor. Passa, neste caso, a contribuir com o valor fixo mensal de R$32,10 (comércio ou indústria) ou R$36,10 (prestação de serviços), que será destinado à Previdência Social e ao ICMS ou ao ISS, e se torna um “Microempreendedor Individual” (MEI), também conhecido como “Pequeno Empreendedor”. A partir de então, ele pode contar com o “registro no Cadastro

7 Castel, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, Vozes, Petrópolis, 1998,
p. 23.
8 Aqui, a noção de exclusão social foi adotada a partir de um prisma que a considera em seu sentido ambivalente. Isto porque ela se revela como um fenômeno extremamente funcional ao sistema, apresentando-se como uma exclusão que é, ao mesmo tempo, excludente e includente. Assim, determinadas camadas da estrutura...

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