As crônicas do capital: o estado, a modernidade e políticas sociais

AutorJackson da Silva Leal
CargoDoutorando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Páginas67-91

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1. Introdução

O presente trabalho tem por objetivo analisar a relação complexa e dialética que se desenvolve entre o Estado, a modernidade e políticas sociais.

Utilizando-se de uma abordagem que parte do título traduzido à língua Portuguesa do primeiro filme da série “As Crônicas de Nárnia” - O leão, a feiticeira e o guarda roupa3. Salientando que na análise e interpretação se utilizará de alguns traços apresentados pelos personagens do filme para analisar e destacar um paralelo com a dinâmica político-econômico-social contemporânea.

Muito embora o filme não tenha como objetivo propiciar esta reflexão (provavelmente, pois não se pode afirmar categoricamente), se trata de um reflexo criativo que surge a partir dos estudos da estrutura moderna capitalista envolvendo essas três figuras ficcionais. E a partir desta abordagem que entrelaça ficção e realidade propõe-se a análise de como se inserem as políticas sociais (guarda roupa mágico), sua instituição e desenvolvimento, em meio a esta relação existente entre a sociedade e a luta voraz do sistema capitalista moderno por demanda consumidora e obediente, cuja din mica é ditada pelo Mercado (a rainha dourada da modernidade), e que tem as suas relações permeadas por um personagem não menos importante, ou igualmente decisivo, que é o Estado (leão) neoliberal.

Apresenta-se este jogo de palavras, personagens e figuras para demonstrar a intrincada relação entre esses elementos a constituírem a trama social em sua fase atual a partir da lógica da fragmentação social, tão bem trabalhada por Zygmunt Bauman em Modernidade Líquida4, e que em parte instigou o presente trabalho. Neste sentido, abordam-se os elementos conformadores da din mica contempor nea em que se des-

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envolvem as políticas sociais, no seio da modernidade e a partir de din micas eminentemente público-Estatais. Esta din mica relacional e intrincada produz o processo de esvaziamento do espaço da política, enfraquecimento do privado com a fragmentação social e o desenvolvimento de uma cidadania formal.

A partir disto, propõe-se uma sociabilidade que passe ou que conflua por um enigma de políticas sociais. Que estas sejam produzidas na realidade das cotidianidades, calcada num processo de alargamento da concepção de democracia, efetivo exercício de cidadania e reapropriação do espaço público e não meramente de planificações econômicas, jurídicas e discursos politiqueiros/policialescos.

Assim, objetiva-se o retorno do pensar a din mica política e suas políticas sociais e consequentemente a sua reconstrução, a partir da lente da interdisciplinaridade, bem como da práxis reflexiva, a fim de possibilitar um espaço autêntico de reflexão e discussão, pautado pela crítica e pela dialética, a avançar por critérios de demandas sociais, e não mais, pelo mero peso do investimento de capital e suas demandas consumidoras e individualistas.

2. A imprópria confusão entre Welfare State e políticas sociais: um breve histórico

Inicia-se esta abordagem apresentando a política social, o Welfare State e suas origens, aproximações e distanciamentos.

A política social é um fenômeno anterior ao estado de bem-estar, sendo toda prática comprometida com a mudança e tensionamento social em prol dos desamparados, despossuídos, dominados, menos favorecidos, não se reduzindo à prática estatal ou normativa. É uma prática e uma reflexão que se inicia assim que as relações de produção começam a gerar a desigualdade, portanto, pode-se afirmar que é tão antiga quanto a emergência da questão social e a conflitante relação entre capital e trabalho.

Entretanto, tem a sua construção mais acentuada com a Revolução Industrial e a sedimentação dos Estados Nacionais e a difusão dos direitos individuais e políticos, o que possibilitou às massas populares começarem a participar do jogo político. E, diante da pauperização geral e aguda ocasionada pela Revolução Industrial e a exacerbação do modelo capitalista liberal e a exploração que se seguiu, bem como das condições sub-humanas de existência, que aos poucos se acentuou e acirraram-se os debates e embates por políticas sociais5.

Neste momento, passa-se a análise da trajetória da política social, desde os seus primórdios onde, inicialmente apresentavam uma característica de controle social e de uma faceta repressivista, até se chegar ao modelo do Welfare State.

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Começa-se pelo modelo da Rainha Elisabeth 1 da Inglaterra, cujo principal instituto/prática utilizada eram as Workhouses, nas quais os indivíduos eram testados e levados às condições mais desumanas de vida e de trabalho, a fim de provar que realmente necessitavam da ajuda estatal. Caso conseguissem se submeter, era porque realmente necessitavam dos benefícios. Dir-se-ia que era uma condição probatória para a concessão da ajuda social6.

Assim, tal paradigma era assentado no ideário de que os benefícios públicos aos desvalidos deveriam ser os piores possíveis, inferiores ao pior salário, para que fossem incentivados ao trabalho, como propõe Faleiros “o indivíduo era culpado de sua situação, legitimando-se essa ideologia por critérios morais, de uma moral natural. Como se o fato de existir pobres e ricos fosse um fenômeno natural e não o resultado do tipo de produção existente”7.

Ademais, entendia-se que ser o cidadão (súdito) e beneficiário ou necessitado de benefícios públicos seria como se fosse o equivalente ao cometimento de um delito. Situação esta muito bem gerida pela burguesia da época que se utilizava desses indivíduos como mão-de-obra mais que escrava, não humana, tendo em vista as condições a que eram submetidas, não importando se eram mulheres, homens, idosos ou crianças; e assim obtinham altos índices de lucro através da mais-valia pura, através da super-exploração.

No alvorecer do Liberalismo Clássico com Adam Smith, mantém-se o mesmo modelo de seguridade, calcada no ideário de que os benefícios desestimulavam a mãode-obra. Portanto, tal condição de desumanidade seria uma política defensora da ideia do capital e do trabalho ativo. Este modelo de política social que se desenvolveu no período pré-industrial e ao longo do desenvolvimento da sociedade burguesa, até o auge da Revolução Industrial e estruturação do modo capitalista de produção produziu um enorme contingente de desvalidos, famintos, doentes e mutilados.

E é neste contexto que começa a surgir e ganhar força a discussão acerca de políticas públicas e de responsabilização do Estado por este contingente. E neste meio que surge a Sociedade Fabiana ao final do século XIX na Inglaterra que preconizava a luta de classes mais aguda e a revolução proletária, e acreditavam na transição ao socialismo através de mudanças a partir e de dentro do próprio sistema capitalista através da ideologia e da educação e demais pequenas ações modificadoras da sociedade. E a partir disto, posteriormente, tem-se o modelo do Plano Beveridge (Inglaterra), de assistência universal que previa seguros e benefícios para desempregados, doentes, idosos8.

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Demonstrando ser uma mudança político-social com forte componente e fundamento também econômico, que apresenta um paulatino processo de tomada de consciência, assim, de crescimento da esquerda (revolucionária e contestatária) e de igual forma, como estratégia de manutenção a partir de modificações sensíveis na direita reformista (governista e capitalista).

Fortalece-se ainda a tese de que tais pessoas se encontravam nesta condição por conta do sistema que as produzia, mantendo e piorando a situação desses indivíduos e não mais a teoria da ontológica condição de pobre, ou seja, por desvios pessoais e morais. Sendo um dos grandes fundamentos da obrigação do Estado em provê-los de algum sustento.

Vale referir ainda a própria tomada de consciência por parte de executores, controladores e pensadores do sistema capitalista, que tal condição ocasionaria revoltas, e ainda, pretendendo sempre a ampliação dos lucros e dos níveis de produção, necessário se faria a qualificação de mão-de-obra, o que era impossível a partir de tais condições de tratamento e trabalho. Neste sentido, assevera Potyara Pereira sobre esses aspectos: os líderes do novo liberalismo preocupavam-se com a eficiência econômica e com a competitividade internacional e estavam cientes de que a defesa nacional e o fortalecimento da economia tinha estreita relação com o bem-estar dos trabalhadores e a população em geral. Essa consciência se tornou mais clara durante o recrutamento de jovens do sexo masculino para o serviço militar, quando se constatou que a maioria deles não estava apta a exercê-los, dada a sua debilidade física. Fica claro, assim, que a política social desse período constituiu um fator de preparação de recursos humanos para fazer face às demandas da sociedade industrial altamente competitiva9.

Assim, demonstra-se um pouco da trajetória da política social e a criação do Welfare State e a passagem de um modelo paternalista, caritativo, punitivo, para um modelo mais consciente das necessidades do capital.

Era a tomada de consciência do sistema no sentido político e social, ambos estratégicos. Necessidades que vão desde a mão-de-obra qualificada, saudável e dos maiores índices de produção e lucro, até a desmotivação de movimentos que se criavam em torno das crises e das péssimas condições de vida e de trabalho, ou seja, uma estratégia perpetuadora do sistema de produção e seu modelo político.

Assim, é o entendimento de Potyara Pereira sobre esta nuance metamórfica da política social vista pela lente do capital e de seus intentos com a política social que serve de ferramenta legitimadora e pacificadora:

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