A aplicabilidade dos direitos do consumidor e a autonomia patrimonial da empresa.

AutorLucas Carlos Vieira
Páginas2-9

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1 - Intróito

É bem verdade que a Ciência do Direito entendida como o estudo do contexto de proposições normativas com o fim de (co)ordenar todo o comportamento dos seres humanos, descrevendo, tão somente, por meio duma metodologia própria, as condutas empreendidas pelas normas, cria meios que servem, dentre outras finalidades, para diferenciar o "ser" de um outro complexo normativo, qual seja, "as ficções jurídicas".1

Por ficção jurídica entende-se, em suma, um meio de definição que se vale a Ciência do Direito, dispondo do que diferentemente ocorreria se na ordem natural das coisas a mesma não estivesse em observância, ou melhor, o instituto da ficção jurídica cria, fantasiosamente, um termo que empresta significado jurídico a uma situação que, se comparada aos fatos reais ocorridos em nossas vidas, pareceria ambígua, ou, então, sem um significado plausível. Em termos exemplificativos, analisemos uma das mais famosas ficções jurídicas, "a empresa", assim entendida, nas celebres lições de Carvalho de Mendonça (1953, p. 492), como sendo:

"(...) a organização técnico-econômica que se propõe a produzir, mediante a combinação dos diversos elementos, natureza, trabalho e capital, bens e serviços destinados à troca (venda), com esperança de realizar lucros, correndo os riscos por conta do empresário, isto é, daquêle que reune, coordena e dirige êsses elementos sob sua responsabilidade". [sic]

Em termos práticos, seria lógico dizer que a empresa é uma pessoa jurídica, consoante dispõe o artigo 44, inciso II, do novel Código Civil. Assim, diferentemente da pessoa física, a empresa - pessoa jurídica de direito privado - não nasce como a primeira, até porque aquela existe por criação da natureza, ao passo que a sociedade (art. 44, II, CC), Page 3 doravante denominada empresa, possui como nascedouro uma razão legal, o registro no órgão competente para tanto, pois, como é evidente, ninguém fica "grávida" de uma "pequena empresa".

Nestes exatos termos, a ciência do direito criou outra ficção que complementa a noção da "empresa, isto é, a "personalidade jurídica", que nas festejadas palavras de Clóvis Beviláqua (1921, p. 43) elucidam as causas e os efeitos da personalidade jurídica aplicada à sociedade, ou melhor:

"A conseqüência imediata da personificação da sociedade é distingui-la, para os efeitos jurídicos, dos membros, que a compõem. [...] A sociedade constituída por seu contrato, e personificada pelo registro, tem um fim próprio, econômico ou ideal, move-se, no mundo jurídico, a fim de realizar esse fim: tem direitos seus, e um patrimônio que administra, e com o qual assegura, aos credores, a solução das dívidas que contrai".

Vale lembrar que a razão da criação da personalidade jurídica remonta ao clássico leading case Salomon v. Salomon, onde um empresário, em meados de 1898, em Inglaterra, constituiu uma sociedade por ações observando todo o trâmite burocrático e legal, sendo certo que depois de constituída a supracitada pessoa jurídica, Salomon concedeu à própria empresa um empréstimo com privilégios. Após o fracasso comercial, o mesmo comerciante, já previamente vislumbrando a insolvência e em prejuízo dos demais credores de quem havia comprado mercadorias para o estabelecimento, recebeu integralmente o valor que havia cedido a sua própria empresa, deixando aqueles a mercê de outras cobranças pusilânimes.

Em terras tupiniquins, a personalidade jurídica veio estampada no Código Civil de 1916, em seu artigo 20, prevendo que "as pessoas jurídicas tem existência dista da dos seus membros". Posteriormente, na Lei nº. 4.137/62, cuja temática versava sobre a repressão ao abuso do poderio econômico, continuou a evidenciar o espírito do legislador de punir austeramente condutas dos sócios na condução desleal da empresa, donde se visualiza no artigo 6º., parágrafo único, da supracitada lei, a desconsideração da personalidade jurídica à empresa que cometesse o abuso de poder econômico, sendo que tamanha medida foi encarada como sanção a atos fadados ao enriquecimento sem Page 4 causa. Nesse compasso, o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 28, o qual ocupar-se-á mais atentamente no item subseqüente, foi a legislação seguinte a dar azo para a desconsideração da personalidade, acompanhado em seguida pelo novo Código Civil de 2002 (artigo 50 do Codex).

2. A grande celeuma jurídica em questão: Uma interpretação do § 5º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor e sua (in)aplicabilidade

De acordo com o estudo que tentou-se, sucintamente, transpor sobre a "ficção" da personalidade jurídica referente ao modo pelo qual dá-se a autonomia de relações entre direitos e bens existentes da pessoa física (sócio) e da pessoa jurídica (sociedade empresária), chega-se ao momento...

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